sexta-feira, 17 de maio de 2013

Demolindo a própria História. O Descaso com os antigos casarões em Salvador.

Modernidade? Importantes símbolos do passado e retratos ainda presentes das transformações da Cidade do Salvador. Atualmente os velhos casarões do Corredor da Vitória continuam ameaçados ou mesmo sendo demolidos. Em postagem especial veremos uma retrospectiva da febre demolidora que atingiu Salvador, especialmente no Corredor da Vitória, Campo Grande, Graça e Barra ao longo dos anos.
http://rafaeldantasbahia.blogspot.com.br/2013/05/demolindo-propria-historia-o-descaso.html

O painel pintado em 1952¹ por Cândido Portinari retrata a Chegada da Família Real ao Brasil em 1808 (imagem maior), desembarcando em Salvador, Bahia. Quatro dias depois foi promulgada a Abertura dos Portos as Nações Amigas.
Ao longo do século XIX, significativas mudanças no cenário econômico, politico, social e urbano, foram sentidas na Bahia, principalmente na capital. No inicio do século XX a Cidade do Salvador passou por uma importante modernização, seguindo os passos do que já tinha acontecido na então Capital Federal, o Rio de Janeiro com o prefeito Pereira Passos. Na Bahia com o Governador J. J. Seabra, Salvador passou por seu embelezamento, onde inúmeras construções mudaram o panorama da velha Cidade. A Avenida Sete de Setembro é o grande marco do período. Regiões como o Centro de Salvador, Corredor da Vitoria e o Bairro da Graça, são símbolos desse momento. Nas imagens menores: Largo da Graça [Casarão dos Carvalhos e de Luiz Tarquínio] , e duas visões do Corredor da Vitoria na década de 20. Terceira imagem, casarão da família Carlos Costa Pinto, demolido. Reprodução: Blog Rafael Dantas, Bahia. 

Texto: Rafael Dantas.
História. Universidade Federal da Bahia.
 A Abertura dos Portos em 1808 possibilitou uma série de modernizações que marcaram significativamente algumas regiões de Salvador. Especialmente no século XIX destacamos a vinda de comerciantes estrangeiros para Bahia, entre eles: ingleses, franceses, alemães, suíços e portugueses. A região do Corredor da Vitória e da Graça, principalmente, foram os lugares escolhidos pelos ricos comerciantes do período, entre eles esses estrangeiros, que encontraram ali a região ideal para construir suas residências. Seguindo a ideia de modernidade da época, junto com as questões de salubridade e os estilos arquitetônicos que vigoravam na Europa - especialmente em Paris, com as reformas do Barão de Haussmann.
O contexto urbano do Centro Antigo da velha Cidade de Salvador, marcado pela predominância do Colonial nos casarios, residências que dividiam paredes, ruas estreitas e com vários problemas sanitários (realidade de várias cidades pelo mundo na época), começaram a ser considerados exemplos do atraso. É importantíssimo também mencionar a crise açucareira e a abolição da escravidão, fatos que abalaram a elite do final do século XIX, caracterizada pelos ricos senhores de engenho.
O século XIX abriu as portas para essa nova burguesia e posteriormente a construção dos casarões que já embelezaram a Cidade. Até serem demolidos sob uma nova visão de crescimento e modernidade que passou por cima de tudo, e continua destruindo o que sobrou. Nos últimos anos o conhecido Corredor da Vitória (trecho da Avenida Sete de Setembro) perdeu vários imóveis históricos. As demolições mais recentes foram a Mansão Wildberger (2007) o Casarão do Jornalista Jorge Calmon (demolido em 2009), o Chalé que ficava ao lado do Curso UEC (hoje uma ridícula concessionária de automóveis, demolido em 2012) e o velho Casarão do curso UEC, demolido recentemente.
A Recente Demolição.

Casarão no Corredor da Vitória onde funcionou o Curso de Inglês UEC. Demolido completamente em maio de 2013.
Imagem (recorte): Google Maps 2011.


 Assim como os outros casarões do Corredor da Vitória, a mansão (imagem a cima) serviu de residência até meados do século XX (na década de 60 muitos dos casarões que ainda existiam começaram a ser vendidos e demolidos e no lugar começaram a aparecer os edifícios residências). Segundo informações de uma das pessoas entrevistadas o imóvel foi sede de uma construtora, e na década de 80 passou a funcionar o conhecido curso de inglês UEC (Universal English Course). Em 2010 a UEC encerrou suas atividades em Salvador depois de 30 anos de funcionamento.
No inicio de 2012 um site de vendas mostrava o casarão a venda. Algumas imagens exibiam detalhes internos do imóvel, que devido às várias reformas realizadas ao longo dos anos, perdeu muito de suas características originais. Com exceção de alguns detalhes internos, e da escadaria em madeira. Aparentemente a modificação externa mais visível foi realizada na fachada do imóvel, cobrindo a janela central do andar térreo, onde tínhamos o nome do Curso de Inglês UEC. Externamente o imóvel ainda apresentava a maioria das características com poucas modificações, como pode ser visto em uma imagem do início do século XX (infelizmente indisponível).
A fotógrafa Vitória Régia Sampaio registrou o momento da demolição do casarão. Pelas imagens o imóvel começou a ser demolido no dia 27 de abril de 2013, e no dia 4 de Maio, o terreno já estava limpo. As imagens de Vitória Régia Sampaio, e um vídeo disponível no YouTube, são os únicos registros até agora encontrados sobre a demolição do casarão.
Casarão no Corredor da Vitória sendo demolido.
Imagem Vitória Régia Sampaio 2013. Reprodução autorizada pela autora. Blog Rafael Dantas, Bahia.

As últimas paredes do Casarão na Vitória sendo derrubadas.
Imagem: Vitória Régia Sampaio 2013. Reprodução autorizada pela autora. Blog: Rafael Dantas, Bahia. 

Com o Casarão já demolido, as máquinas começaram a limpar o terreno.
Imagem: Vitória Régia Sampaio 2013. Reprodução autorizada pela autora. Blog: Rafael Dantas, Bahia. 


 As Reações.
Conversei com comerciantes locais, museólogos, moradores, trabalhadores da região e transeuntes, sobre a demolição do casarão (a maioria não quis se identificar). Sete dos entrevistados não concordaram com a demolição do imóvel, destacando a importância histórica e a beleza arquitetônica da velha mansão. Duas pessoas concordaram com a demolição; uma não vê importância alguma na preservação do casarão demolido e a outra pessoa diz que no lugar poderá ser construído algo de positivo para o Bairro da Vitória. O comentário mais marcante foi o da museóloga que alertou sobre a triste banalização das demolições.

O que restou. E o que foi demolido.
A recente demolição (do casarão na Vitória) representa mais uma perda para a memória urbana da Cidade do Salvador do final do século XIX e inicio do XX. Triste realidade presente principalmente nos bairros que passaram, e passam, por grande especulação imobiliária.
[Clique nas imagens para ampliar]
O antes e o depois das construções que ladeiam o Campo Grande, Salvador Bahia. Ao longo dos anos os palacetes da região foram demolidos, e no lugar grandes edifícios residenciais foram construídos. Foi o caso do Palacete Machado (antiga Câmara dos Deputados da Bahia) e o Templo da Igreja Anglicana em imagem da década de 20. No lugar das construções surgiram os edifícios: Palácio da Assembleia e Britania Mansion respectivamente.
A primeira imagem foi encontrada na página do Facebook do British Cemetery in Bahia - St. George´s Society.
A segunda imagem é do Google Maps 2011.
Reprodução: Blog Rafael Dantas, Bahia 2013.







No Campo Grande
perdemos importantes construções durante o século XX. Entre elas destacava-se o antigo Palacete Machado, onde em 1920 foi instalada a Câmara dos Deputados da Bahia (futura Assembleia Legislativa da Bahia), permanecendo ali até 1930. No lugar do Palacete foi construído o Condomínio Edifício Palácio da Assembleia. Ao lado da antiga Câmara dos Deputados tínhamos a sede da Igreja Anglicana da Bahia construída em 1853, demolida em 1975; no lugar construíram o edifício residencial Britania Mansion.
[Clique nas imagens para ampliar]
O antes e o depois do Largo da Graça. Com o passar das década os palacetes e chalés desapareceram. O casarão da Família Carvalho, construído no final do século XIX, é o único casarão que sobreviveu no Largo da Graça, ao lado da Igreja da Graça. Imagem da década de 20, século XX. Já o casarão do industrial Luiz Tarquínio foi demolido e no lugar construíram o edifico Paulo Nunes. Hoje o Largo é cortado por importantes avenidas, e perdeu os jardins que já embelezaram a região.
A primeira imagem foi encontrada no Grupo/Facebook: Salvador, História de uma Cidade.
A segunda  imagem é do Google Maps 2011.
Reprodução: Rafael Dantas, Bahia 2013.


No Bairro da Graça e Barra a maioria das antigas construções desapareceram. No Largo da Graça e na Avenida Princesa Leopoldina só restaram duas construções, o Chalé Alpino em estilo Inglês dos Carvalhos construído em 1890 ao lado da Igreja da Graça. E outro é o casarão que pertence à família Soares da Cunha, pioneiros da Medicina Homeopática na Bahia, localizado entre dois edifícios: Olga Pontes e Princesa Isabel. O professor Heraldo Lago Ribeiro lembra que ao lado da residência dos Carvalhos ficava a casa do Industrial Baiano Luiz Tarquínio que foi demolida e no lugar construíram o Edifico Paulo Nunes. Na Avenida Princesa Isabel (Graça) o Casarão conhecido como Villa Augusta, que pertenceu ao renomado Professor Thales de Azevedo será demolido para construção de dois edifícios. (Clique aqui para ler o Artigo sobre a Villa Augusta). Na Ladeira da Barra em 2009 tivemos a 15° edição da Casa Cor Bahia em um dos últimos casarões da região, que pertenceu ao ex-cacauicultor Nelito Carvalho (o último proprietário do imóvel foi Manoel Joaquim de Carvalho) logo depois a velha mansão foi demolida para construção de um edifício residencial: o Solaire. (No próximo mês será publicado um artigo sobre a evolução da destruição dos casarões no Corredor da Vitória.). A partir da década de 50/60 significativas mudanças no bairro da Barra começaram a transformar a região. O que se intencionaria nas décadas seguintes com a demolição de centenas de casarões, chalés e palacetes, surgindo modernos edifícios residenciais e hotéis. O mesmo pode ser aplicado para os outros bairros da região central, que com suas devidas características, perderam um número significativo das antigas construções.

No meio da destruição, os "remanescentes".  
Evidente que não podemos ser contrários a melhorias urbanas ou defendermos que absolutamente "tudo" seja preservado em uma cidade, ignorando os valores de cada imóvel ou região (preservar só por preservar). Porém, especificamente no caso da recente demolição - do casarão no Corredor da Vitória, e dos outros tantos tristes episódios, temos mais uma perda em um lugar onde poucos imóveis com características históricas e arquitetônicas para tombamento ainda existem.
Felizmente ainda permanecem de pé no Corredor da Vitória: o Museu de Arte da Bahia, O Museu Carlos Costa Pinto, a antiga Residência Masculina da Universidade Federal da Bahia, o casarão que fica em frente ao Edifício Margarida Costa Pinto, e o outro que fica em frente ao Edifício Victory Tower (primeiro a ser preservado e ao fundo construído um edifício). Existem mais três imóveis que pertencem a instituições públicas e privadas, e outro que abriga uma agência do Banco Santander. Os dois últimos são o Solar Cunha Guedes e o velho Chalé vizinho (Conhecido como Ferro Velho).


Imagem que mostra o Edifício Leonor Calmon no fundo do
Casarão eclético do Jornalista Jorge Calmon. No projeto
divulgado inicialmente a Mansão seria preservada. Mas foi
demolida em 2009.
Imagem encontrada no site da Revista Veja. 
Alguns desses casarões entraram na lista de imóveis tombados provisoriamente em 2003 pelo IPHAN, mas infelizmente em 2004 o processo foi arquivado. Inclusive as Mansões Wildberger (clique aqui para ver artigo sobre a Mansão W.) e a do Jornalista Jorge Calmon (hoje Mansão Leonor Calmon demolido em 2009), que estavam na lista, já foram demolidas.
O historiador Rubens Antonio registrou a demolição do Casarão que pertenceu ao jornalista. As imagens de R. Antonio são os únicos registros até agora encontrados sobre a demolição.

O casarão eclético do Jornalista Jorge Calmon sendo demolido em 2009.
Imagem: Rubens Antônio 2009. Reprodução autorizada pelo autor. Blog Rafael Dantas, Bahia.

Rubens Antônio também registrou a demolição do chalé eclético de 1919 que pertenceu a Sr. Pedro T. Velloso Gordilho, localizado entre a Doceria Doces Sonhos no Corredor da Vitória e o casarão da UEC. O imóvel foi demolido e no lugar construído um terrível “galpão” da concessionária Honda. Algumas pessoas apontaram a recente demolição do imóvel (2012) como uma das perdas mais significativas no Corredor da Vitória. Durante muitos anos funcionou no Chalé uma clínica infantil.
Antigo Chalé do Corredor da Vitória construído em 1919. Foi demolido em 2012, e no lugar foi construído uma concessionária. Agora só restou um chalé no Corredor, conhecido como Ferro Velho, ao lado do Solar Cunha Guedes.
Imagem: Rubens Antônio 2012. Reprodução autorizada pelo autor. Blog Rafael Dantas, Bahia. 

Evolução da demolição do velho chalé eclético de Pedro Gordilho no Corredor da Vitória. Na segunda imagem visualiza-se ao fundo o casarão da UEC. Na terceira imagem o "Galpão" da Honda.
Imagem: Rubens Antônio 2012. Reprodução autorizada pelo autor. Blog Rafael Dantas, Bahia.

Se expandirmos a triste realidade dos velhos casarões do Corredor da Vitória, Graça Campo Grande, Barra, para os outros bairros de Salvador, observaremos que perdas importantes marcaram e continuam marcando o solo da velha capital baiana.
Os bairros do Bonfim, Subúrbio Ferroviário, Ribeira, Itapagipe, Nazaré, Brotas, Rio Vermelho, (entre outros) também possuem importantes construções que não são tombadas,e outras que já foram demolidas ou modificadas. Se expandirmos esse debate para as áreas verdes ameaçadas em Salvador, notaremos que a situação também é grave. (clique aqui para ver os artigos sobre as áreas verdes da Avenida Paralela, Corredor da Vitoria e Bairro do Canela)

Em muitos casos as leis patrimoniais só tombam a parte externa do casarão, internamente o proprietário pode fazer modificações. Quando o casarão não é tombado podem existir acordos que preservem completamente ou parte do imóvel, como exemplo temos os prédios que preservaram as antigas residências na frente do edifício.  

A antiga Residência Cardinalícia de Salvador no Capo Grande. Hoje o Morada dos Cardeais. Foi preservada a fachada e os gradis das varandas. Mas internamente nada foi preservado. A torre e os jardins foram demolidos.
Imagem: Google Maps 2011.

 Foi isso o que aconteceu com a antiga Residência Cardinalícia no Campo Grande ou também conhecida como Palácio Arquiepiscopal. Nome que recebeu quando a sede foi transferida do antigo Palácio colonial na Praça da Sé, para a residência do Campo Grande que pertenceu ao engenheiro Hugh Wilson. Em 1927 a casa foi ampliada e adquirida pelo Arcebispo D. Augusto Álvaro da Silva (envolvido no triste episódio da demolição da Sé) tornando-se residência cardinalícia. A construção da Morada dos Cardeais causou grande polêmica pois ameaçava o antigo casarão. Mesmo com a contrariedade de vários arquitetos, historiadores, sociedade em geral, o edifício foi construído e entregue aos moradores em 2005. Durante as obras do empreendimento os azulejos da parte externa do casarão foram retirados, toda a parte interna do Palácio Arquiepiscopal destruída (virou salão de festas, academia, etc), derrubaram os jardins (para construção do Edifício), e demoliram o observatório (torre) que ficava no fundo da propriedade (sem necessidade). Atualmente o atual Casarão do Edifício Morada dos Cardeais é simplesmente uma “cumbuca” sem nenhuma beleza ou relevância histórica internamente. Externamente a fachada ainda mantém a maioria das suas características, inclusive os detalhes em ferro das varandas importados por H. Wilson.

Fachada Neoclássica já reformada, da Residência Cardinalícia, hoje Morada dos Cardeais.
Imagem: Google Maps 2011. 

Conclusão.
 Tais atitudes expõem de forma dramática a triste realidade de uma sociedade que não preserva, nem dá a atenção correta a sua História Visual. Essas construções simbolizam importantes testemunhos das transformações que ocorreram em Salvador durante as várias etapas de melhoramentos urbanos, estilos arquitetônicos, embelezamentos e modernizações; e a expansão da própria Cidade. Permitir que esse importante patrimônio simplesmente  desapareça é jogar a História de Salvador nos escombros da ignorância. E legar para todos os soteropolitanos um futuro que não conhecerá o passado da sua cidade.
Rafael Dantas, Bahia.
História. Universidade Federal da Bahia.

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Agradecimentos:
Fotógrafa Vitória Régia Sampaio.
Professor e Historiador Heraldo Lago Ribeiro.
Historiador - Museu Geológico da Bahia - Rubens Antonio.
Referências:


Artigos:
AZEVEDO. Thales. Ingleses, Árabes na Bahia. Jornal A Tarde, sexta-feira, 04/06/1993.
MOTA. Luciana Guerra Santos. Corredor da Vitória no século XX: Cem anos de Intensas Transformações Urbanas.  XIII Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.
25 a 29 de maio de 2009. Florianópolis  - Santa Catarina - Brasil.


Sites Jornalísticos e imagens:
http://www.tribunadabahia.com.br/2012/04/11/agoniza-o-palacio-arquiepiscopal-da-bahia
Notas:
1. O Painel de Cândido Portinari encontra-se na Associação Comercial da Bahia.

*Atenção. A divulgação dos textos e imagens do Blog só pode ser feita com a devida referência do link, nome do autor dos artigos e nome do Blog. Atenciosamente Rafael Dantas